17 Agosto 2007

A «Ordem de Direito» e os seus valores fundamentais.

  1. A «Ordem de Direito» é uma «utopia positiva».

Devemos começar por caracterizar e distinguir entre «Utopia Negativa» e «Utopia Positiva». Distinguiremos estas duas formas de «Utopia» do seguinte modo: a primeira é a negatividade (ou a negação) total e radical de todo o positivo real aí existente, em termos sociais, culturais e civilizacionais; contrapõe-se à realidade positiva pela sua negação e contradição absolutas e nada oferece como alternativa ─ é o «Nada», o «Não», de tudo o que existe: a «Grande Recusa», lhe chamou HERBERT MARCUSE. Um exemplo é, quanto a nós, sem dúvidas, a utopia marxista, ou as que, de algum modo, se vão, ainda hoje, nela filiar. Já a «Utopia Positiva» tem uma certa positividade, de duas formas: por um lado, ela já existe, positivamente, naquela superestrutura civilizacional que FRIEDRICH HAYEK designou como o «Métaconsciente» cultural de uma dada Civilização ─ ou o que SIGMUND FREUD designou como o «Super-Eu Cultural»; o que KARL POPPER chamou de o «Mundo 3»; e o que NICOLAI HARTMANN chamou de «Noosfera», ou o «Mundo dos Valores». E, estando acima e para além da mera realidade social imediata, mas em consonância com ela e não a contradizendo, ou sem a negar (a outra forma da sua positividade), por outro lado dirige-lhe «exigências normativas»: ou porque os seus Valores podem não se ter realizado de todo, ou todos; ou serem atraiçoados e negados pelas vicissitudes da vida corrente; ou só se realizarem parcialmente, ou defeituosamente ─ e é nesta «exigência normativa» à realidade social e civilizacional e positiva corrente e quotidiana que está o «diferencial» de um «Mais», ou de um «Excesso», que faz dela, ainda, uma «Utopia». Por outro lado, ela tem de ser permanentemente «construída» e «re-constituída», ou feita (re)-nascer pelas pessoas, para se manter válida e positivamente vigente ─ i. é, para serem mantidos o seu alcance de exigência e a sua memória presente. Autores como JONH RAWLS falam de uma «Utopia Realista»; e ANTHONY GIDDENS fala de um «Realismo Utópico». Isto porque, muito do que deve ser mantido como exigência normativa à realidade, está já aí: nos Valores e dimensões da Cultura vigente e já existente e alimentando esta.

 2. A «Ordem de Direito» faz parte do «Métaconsciente» cultural da nossa «Civilização Greco-Romana, Judaico-Cristã e Europeia ou Ocidental e Atlântica»: i. é, daquela superestrutura de valores, princípios, pré-concepções, categorias, conceitos e quadros mentais que, não sendo sempre inteiramente «consciente», todavia condiciona muito das nossas condutas, práticas e atitudes comuns. É assim, também, uma «Utopia Normativo-Cultural e Jurídico-Política Aberta», que, simultaneamente, pressupõe a aponta para uma correlativa «Comunidade de Direito».

3. A «Comunidade de Direito» e a «Ordem de Direito» são, pois, uma «Comunidade de Pessoas» e uma «Ordem entre Pessoas» ─ as quais são, pelas primeiras, pressupostas e sem as quais elas não existiriam. E a pré-eminência, soberania e dignidade normativas do «Direito» são, fundamentalmente e antes do mais, uma pré-eminência, soberania e dignidade «Éticas» das «Pessoas».

O valor primeiro da «Comunidade de Direito» e da «Ordem de Direito» é, portanto, o valor da «Pessoa Humana Individual», concreta, singular, diferenciada e individuadamente considerada.

Dele decorem os valores:

a) – Da «Dignidade Humana»: a «Humana Dignitas» de que falou IMMANUEL KANT, justamente, como «Dignidade» de um «Sujeito Ético»;

da «Autonomia»: que é, sobretudo, a autonomia para o fundamento, para o compromisso e para a vinculação consentida ─ a autonomia «ética» e/ou «moral», ou seja, o depender, acima de tudo, da sua própria «Lei Interna»;

da «Liberdade», como liberdade ontológica e abertura do homem ao Ser, seja como liberdade liberal negativa, seja pelas liberdades positivas (liberais não-participativas e democrático-participativas);

e da «Responsabilidade»: a qual, particularmente nas formas relacionais da liberdade, consiste na auto-vinculação para a heteronomia e para «algo» de exterior que nos prende e nos compromete; embora não deixe de existir, desde logo, como «responsabilidade perante si próprio» e pela «auto-conformação da própria personalidade».

b) ─ Da «Natureza Humana Comum e Universal», entendida como «constituição ontológico-fundamental» do ser humano (MARTIN HEIDEGGER), bem como da situação do «estar-em-comunidade» deriva ainda o valor da «Igualdade» ─ desde logo como igualdade «radical» ou «ontológica» entre as pessoas; pois, a um nível já «ôntico», podem subsistir desigualdades e/ou diferenciações, quer «verticais» (ou «de mérito»), quer «horizontais» (ou «idiossincráticas»).

Da «Igualdade», assim entendida, decorrem os princípios:

de uma igual dignidade e liberdade sociais;

 ─ de uma igualdade de «estatutos de cidadania» e/ou de «direitos humanos fundamentais», quer como «direitos universais de cidadania», quer como «direitos de cidadania universal»;

 ─ de uma igualdade perante, no e para o Direito;

 ─ e de uma subsidiária e complementar «igualdade equitativa de oportunidades» (JOHN RAWLS);

 ─ bem como o valor jurídico-político da «Democracia», com a sua «igualdade democrática»; mas que, dadas as desigualdades «verticais» ou «de mérito» acima referidas (v.g., as «aristocracias»), exige ser integrada num mais complexo e realista «regime de Constituição Mista»; todavia, ao seu nível próprio, a «Democracia» implica sobretudo o valor da «Participação», bem como deveres sociais concretamente contextualizados de «Solidariedade» e de «Corresponsabilidade» comunitárias.

4. Mas há ainda um outro conjunto de valores que integram a «Ordem de Direito»; são eles:

a) ─ A «Verdade», como «revelação» e «desocultamento» (alétheia) primeiro (HEIDEGGER); e, depois, como «adequação do intelecto às coisas» (fórmula clássica). Ela implica a «Verdade do Homem» e a «Verdade de cada homem»; a «Verdade da Lei Moral Universal» (KANT) e a «Verdade Moral de cada Pessoa»; bem como a «Verdade intrínseca da Natureza das Coisas», qualquer que possa ser, ainda hoje, o sentido útil desta expressão. Todavia, ela é sempre um Ideal Méta-Referencial, que está sempre para além das «verdades», virtual e pontualmente alcançáveis, historicamente; ela é, como pura Idealidade, um valor Meta-Histórico e Meta-Empírico.

b) ─ A «Justiça», que é o valor normativo específico e sobredeterminante do Direito, como a exacta e rigorosa correspondência, proporção e adequação entre o «Ser» e o «Dever-Ser», por forma a que nem o Ser repouse, sempre e só, permanentemente, «em si», num total e acabado imanentismo, mas que se «abra» e se «transcenda» em direcção ao Dever-Ser; e por forma a que este não faça exigências excessivas, desproporcionadas, incomportáveis e insuportáveis ao Ser, violando a sua «natureza essencial própria». A «Justiça» não é assim só «Equidade» (JOHN RAWLS); nem mesmo «Igualdade Complexa» (MICHAEL WALZER); nem, muito menos, estrita «igualdade» (=igualitarismo); mas, essencialmente, «Proporção»: «hominis ad hominem proportio» (DANTE).

c) ─ A «Liberdade», nos termos já vistos, como liberdade liberal negativa e liberdades positivas (liberais não-participativas e liberdades participativas). E da qual disse HEGEL que «o Direito, portanto, é, em geral, a Liberdade como Ideia» e o «Reino da Liberdade Realizada», já que ele é o «reino da vontade livre» e, por isso, «em geral, algo de Sagrado».

d) ─ A «Segurança»: como ordem efectiva, unidade integrada dessa ordem, institucionalização, estabilidade e continuidade, certeza jurídica, exigência de positividade ou vigência, eficácia, Etc.

e) ─ E, finalmente, a «Paz»: no mínimo, como «ausência negativa de tensões e conflitos»; no óptimo, como «convergência, harmonia positiva e compossibilidade de posições e vontades», i. é, como «Concórdia», à qual se referiu sistematicamente JOÃO PAULO II.

5. ─ É esta, quanto a nós, a «Axiologia Transpositiva», ou o «Paramount Law», que especificam, exigindo, uma qualquer Ordem Civilizacional como uma propriamente dita «Ordem de Direito».

Coimbra, Agosto de 2 007.

Virgílio de Jesus Miranda Carvalho.

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