5 Outubro 2007

Uma visão «tridimensional» da Pessoa Humana.

De entre a multiplicidade das dimensões da «Pessoa Humana Real» – que a definem como uma «complexidade integrada», pois que a pessoa não é uma mera simplicidade, mas uma «unitas multiplex», uma «unidade ou ordem plural» – é possível identificar, pelo menos e de um modo fundamental, as seguintes linhas de força:

1. Uma dimensão estrutural «a priori» ou constitutivo-formal que é uma sua «Natureza Humana Comum e Universal» – ou melhor: uma mesma «constituição ontológico-fundamental», na terminologia de MARTIN HEIDEGGER, que interpreta o «ser» do homem, na verdade, menos como «quididade» ou «substância», e mais como jogo, ordem relacional interna, abertura, plasticidade, mobilidade interna, mutabilidade, temporalidade e historicidade, projectividade, possibilidade «transcendens», etc. ,  ou um «fundamento humano comum», expressão de «uma mesma e universal realidade humana», aberta, dinâmica e plástica, móvel e mutável, dotada de historicidade, comum a todos os outros seres humanos, como quadro-geral de determinações e de possibilidades que a «constituem» na sua «universalidade humana» e que é a chamada «identidade do diferente»: enfim, todos os «existenciais» e «modos-de-ser» analisados pelo mesmo HEIDEGGER em «Ser e Tempo», 1927.É esta dimensão que funda o valor da «Igualdade» (ontologicamente configurada) entre todas as pessoas e, entre outras coisas, enfim, a «Democracia», como universalidade. 

2. Uma horizontal dimensão material (afectiva) «relacional externa», ou «social» (possibilitada pela sua vocação de «sociabilidade», que, embora não exclusiva, FREUD disse ser a sua «aspiração à comunidade»): na verdade, boa parte da sua «identidade» é de origem e constituição «social», desde a formação precoce da «personalidade» no triângulo edipiano da interactiva «situação parental» (parenthood) da família; até, depois, na relação e interacção com a escola, o grupo juvenil, os vários contextos sociais, a civilização e a cultura envolventes, etc. Por outro lado, a pessoa não deixa de formar, em alguma medida, «uma sociedade consigo própria», uma «ordem relacional interna», devido à pluralidade de subjectividades e de fidelidades que, socialmente, os vários contextos sociais externos nela vão constituindo.Só que, esta dimensão – que não tem nada de um exclusivo e total necessitarismo substancialista e essencialista «a priori», como o defende o personalismo substantivista-social dogmático e toda a espécie de «socialismos», que só falam da «pessoa social» e de uma dogmática e exclusivamente única essência ou natureza «social» da pessoa… – não define à pessoa toda a sua «essência» ou «natureza» (que é, não se esqueça, antes do mais,     «Ek-sis-tência»), não esgota toda a sua interioridade, subjectividade e espiritualidade, pelo que, existindo também na pessoa uma indesmentível e parcial dimensão de «insociabilidade» (a «sociabilidade insociável» de que falava KANT), pode hoje, tranquilamente, dizer-se que «nem todo o humano é social». Há uma dimensão da pessoa e da liberdade que será sempre pré-, extra-, ou méta-social. E daqui a conclusão moderna de que o homem não é só «um animal gregário»: «zoon politikon», lhe chamou ARISTÓTELES. 

3. E tem ainda a pessoa uma sua vertical «individualidade própria real» (individualidade natural), possibilitada pelo princípio ôntico-ontológico forte da «individuação», e que se dá e se exprime imediatamente (primeiro, na comum experiência humana da Existência consciente) na unidade ôntico-ontológica do «Eu» (verdadeiro ponto de sutura entre o ontológico e o psicológico), como diferença, como mónada solitária, como substância individual e individuada e como «Existente»: LÉVINAS. Ou seja, a sua estrema e absoluta «singularidade ética individual» e «idiossincrática própria», particular, concreta, diferenciada, única e irrepetível, que a distingue individuadamente de todos os outros seres humanos, através da «Ipseidade»: da «Selbstheit», do «Selbstsein», ou «ser-si-próprio» da filosofia existencial alemã.

E, para uma concepção individualista, realista e crítica da pessoa humana, como a nossa, mesmo que tenhamos que reconhecer que «…o homem real é a unidade dialéctica de duas relativas autonomias, a autonomia do seu “eu social” (…) e de um “eu pessoal” – a unidade dialéctica, se quisermos, da objectividade e da subjectividade humanas» (A. CASTANHEIRA NEVES) – todavia nós afirmamos o «relativo primado do eu pessoal sobre o eu social». Não uma simetria ou perfeita reciprocidade entre aqueles referidos dois eus (ou as duas dimensões do «Self»), mas o «relativo primado ou a preeminência última do eu pessoal sobre o eu social», a preeminência da «Selbstheit», do «Selbstsein», ou do «ser-sipróprio».

Na aceitação da parcial dimensão «social» do «Self» divergimos decisivamente do individualismo estrito e absoluto, do «falso individualismo» solipsista, radicalmente atomista, fragmentarizante e moderno-cartesiano de que falava HAYEK, o qual desemboca, paradoxalmente, tanto no libertarismo ou anarquismo radicais, como no socialismo e colectivismo totalitários. Na afirmação da relativa prioridade ôntico-ontológica ou preeminência última do «eu pessoal», convergimos com o «verdadeiro individualismo» deste último autor referido e de POPPER e com o relativo «privilégio ontológico» que também HEIDEGGER disse ter sempre o ser humano (o «ser-aí», o «Da-sein») sobre o «mundo», sem contudo negarmos este e a sua específica realidade aberta, nem as decisivas autonomia e objectividade sistémicas relativas da sociedade e da civilização. 

Coimbra, Setembro de 2 007.

Virgílio de Jesus Miranda Carvalho.

 

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