25 Agosto 2010

A Constituição de Angola… e a nossa.

Regressámos recentemente de uma curta viagem de quinze dias a Luanda, Angola, aonde não íamos há já 35 anos, e ficámos surpreendidos com várias coisas.

Designadamente, e em primeiro lugar, com a experiência de uma sociedade que, apesar dos seus visíveis e evidentes dificuldades e bloqueios, se afirma como uma sociedade jovem, dinâmica e de progresso imparável.

Depois — e é este o aspecto que queríamos aqui evidenciar —, com o facto de a sua Constituição, recentemente promulgada, na sua versão actual, aos 5 de Fevereiro de 2 010, ser muito mais liberal do que a portuguesa, na redacção que esta ainda mantém e apesar de todas as suas periódicas revisões.

Assim, em nenhum lugar, nem no seu Preâmbulo, nem ao longo de todo o texto constitucional, se fala, na Constituição angolana, em «socialismo», ou algo similar. Isto, surpreendentemente, num país onde ainda é dominante um partido de histórica filiação marxista-leninista-estalinista ortodoxa. E isto, apesar de se dar toda a ênfase, logo no seu artigo 1º., ao «objectivo fundamental» da «construção de uma sociedade livre, justa, democrática, solidária, de paz, igualdade e progresso social». E de se afirmar, no artigo 2º., que: «1. A República de Angola é um Estado democrático de direito que tem como fundamentos a soberania popular, o primado da Constituição e da lei, a separação de poderes e interdependência de funções, a unidade nacional, o pluralismo de expressão e de organização política e a democracia representativa e participativa. 2. A República de Angola promove e defende os direitos e liberdades fundamentais do homem, quer como indivíduo quer como membro de grupos sociais organizados, e assegura o respeito e a garantia da sua efectivação pelos poderes legislativo, executivo e judicial, seus órgãos e instituições, bem como por todas as pessoas singulares e colectivas».

Depois, e ainda em sede do Título I, «Princípios Fundamentais», logo no artigo 14º. se antecipa que: «O Estado respeita e protege a propriedade privada das pessoas singulares ou colectivas e a livre iniciativa económica e empresarial exercida nos termos da Constituição e da lei» — o que não encontra paralelo, com estes alcance e importância, na Constituição portuguesa, mesmo antes do «direito ao trabalho».

Aliás, o «direito à propriedade privada e à sua transmissão, nos termos da Constituição e da lei» é garantido logo em sede de «Direitos e Deveres Fundamentais» (Título II) e de «Direitos, Liberdades e Garantias Fundamentais» (Capítulo II, do Título II, Secção I) — artigo 37º. De resto, no mesmo local, artigo 38º., é afirmado que: «1. A iniciativa económica privada é livre, sendo exercida com respeito pela Constituição e pela lei»; e que «2. A todos é reconhecido o direito à livre iniciativa empresarial e cooperativa, a exercer nos termos da lei».

Assim, é que é só no Capítulo III, do Título II, «Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais», que encontramos o artigo 76º. que diz: «1. O trabalho é um direito e um dever de todos» — e nas demais alíneas se regula o «direito ao trabalho».

Na «Organização Económica, Financeira e Fiscal», Título III, Capítulo I, artigo 89º., mais uma vez se reconhece, como «princípios fundamentais», além do «papel do Estado de regulador da economia e coordenador do desenvolvimento económico nacional harmonioso, nos termos da Constituição e da lei», ainda a «livre iniciativa económica e empresarial, a exercer nos termos da lei» e, expressa e formalmente, a «economia de mercado, na base dos princípios e valores da sã concorrência, da moralidade e da ética, previstos e assegurados  por lei», bem como o «respeito e protecção à propriedade e iniciativa privadas» e a «função social da propriedade».

Outra questão, que a Constituição portuguesa não resolveu, é a do estatuto do «casamento», como instituição tradicional sui generis e no modelo monogâmico e heterosexual, distinguindo-o, quer das «uniões de facto», quer de outras formas de «parceria sexual».

Assim, na Constituição angolana, em sede de «Direitos, Liberdades e Garantias Fundamentais» (Capítulo II, do Título II) e de «Direitos e Liberdades Individuais e Colectivas» (Secção I), no artigo 35º., se diz que: «1. A família é o núcleo fundamental da organização da sociedade e é objectivo de especial protecção do Estado, quer se funde em casamento, quer em união de facto, entre homem e mulher». O resto do artigo regula ainda a filiação, proibindo a discriminação entre os filhos e a utilização de qualquer designação discriminatória relativa à mesma filiação e apontando para a igualdade dos filhos perante a lei.

O que quer dizer que ficam para um outro secundário plano, inequìvocamente de nível infra-constitucional, mesmo depois do das «uniões de facto», outras formas de «parceria sexual».

Quanto ao mais, designadamente na organização do poder político, o texto angolano é de um forte pendor presidencialista, atribuindo todo o Poder Executivo ao Presidente da República, como Chefe de Estado e órgão de soberania, além da Assembleia Nacional e dos Tribunais, que também são órgãos de soberania.

Enfim, um texto com apenas 244 artigos, mas de onde são depurados quaisquer elementos ideológicos, ultrapassados pela História e bloqueadores do «progresso» da sociedade, vocábulo este abundantemente usado em todo o texto constitucional e onde é expressa e formalmente reconhecido o, aí chamado, «sistema (económico-social) de mercado». O que quer dizer que, enquanto este é, na Constituição portuguesa, considerado a título residual e quase que só por omissão se admite, na Constituição angolana é, desde a Lei nº. 12/91 e da Lei de Revisão Constitucional nº. 23/92, conforme se relembra no Preâmbulo, convictamente assumido e formal e expressamente admitido.

Coimbra, 3 de Julho de 2 010.

Virgílio de Jesus Miranda Carvalho (Dr.).