31 Julho 2007
Convém fazer uma breve referência ao que consideramos que seria um modelo desejável para a integração europeia em curso. Na linha de um franco e assumido europeísmo liberal, subscrevemos, também aqui, as ideias de FRIEDRICH HAYEK sobre as estruturas federais complexas do poder político, designadamente, a sua distinção entre os dois níveis da função política: o nível «negativo» e o nível «positivo».
O que apenas deveria ser elevado ao nível «comum» europeu e supra-nacional, ou trans-nacional, é, essencialmente, a função política «negativa» de protecção da cooperação pacífica e das trocas livres. Conviria estabelecer, a esse nível, com efeito, um «espaço jurídico comum», o mais homogéneo possível e regulado pelo menor número possível de legislaturas, as quais funcionariam, analogamente à Assembleia Legislativa do modelo constitucional hayekiano, num único e trans-nacional Parlamento Europeu. Por aqui se vê, não só que não pode prescindir-se de um qualquer poder político «federal» mínimo, como a decisiva importância do alargamento das competências normativas e políticas deste órgão comunitário, actualmente apenas quase só com funções simbólicas, em detrimento dos demais (Comissão e Conselho de Ministros). Bem como ainda a importância, na protecção desse espaço jurídico comum, do Tribunal de Justiça da União, como decisiva e fundamental instituição jurisdicional comum.
Haveria, assim, o espaço alargado de um «único direito comum europeu», como correlato de um «mercado único» europeu e de uma «moeda única». Poderia ainda, a esse nível comum europeu, haver, por outro lado, sem quaisquer problemas, um «Executivo Comum», encarregado da política externa, da defesa, da «polícia federal» e da gestão dos muito poucos «serviços colectivos» e políticas que interessassem à União no seu conjunto. Por outro lado, como exigência dos princípios da descentralização e da subsidiariedade, a gestão da maior parte dos assim ditos «serviços colectivos» e de administração poderia perfeitamente descer até um nível infra-nacional (essencialmente, regional e local), o que não deixaria até de ir ao encontro das principais reivindicações e aspirações legítimas do regionalismo e do municipalismo europeu em matérias de ambiente, de educação, de informação, etc. Quanto aos Estados Nacionais, eles ficariam apenas encarregados da responsabilidade do Executivo quanto à manutenção da ordem pública no seu interior e do Executivo relativo à gestão dos poucos «serviços colectivos» nacionais ainda remanes-centes; além do Legislativo relativo às matérias que inequivocamente não fossem do âmbito daquele «espaço jurídico comum», devendo, aliás, ser reforçadas as competências «políticas» dos Parlamentos Nacionais em diálogo e sintonia directos com o Parlamento Europeu.
De resto, há uma enorme potencialidade de soluções possíveis na combinação complexa e articulada dos vários níveis de poder político (local, regional, nacional e supra-nacional), a qual possibilita a configuração de «estruturas complexas», ainda por cima completadas por «estruturas intermédias», sem que deixem de estar subordinadas aos princípios fundamentais da «descentralização» e da «subsidiariedade», bem como à decisiva distinção haeykiana entre a função política «negativa» (o poder de «dizer não», a única que deve prevalecer no mais alargado espaço comum supra-nacional) e a função política «positiva» de prestação e gestão dos serviços colectivos e de administração (a descentralizar maximamente até ao nível dos Executivos infra-nacionais). Nesta concepção, os Estados Nacionais actuais seriam portanto descongestionados, uma parte da sua substância partindo «para cima» e uma outra parte «para baixo».
Julho de 2 007.
Virgílio de Jesus Miranda Carvalho.
25 Julho 2007
1. A «Ordem de Direito» (ontologicamente una) e os princípios considerados como seus constitutivos (a Verdade, a Justiça, a Liberdade, a Segurança e a Paz) exigem, para a sua ulterior efectividade, positividade, vigência e eficácia, um correlato organizacional e histórico, ou seja, um Estado, que é sempre, de algum modo, um «mal necessário» e que, por isso, só pode ser um «Estado de Direito» (Government of Law, État-de-Droit, Rechtsstaat): um Estado que se funda e legitima na «Ordem de Direito», como realidade ético-cultural, normativa e espiritual-objectiva anterior a ele e para além dele que, simultaneamente, o legitima (melhor: o «valida») e o limita, e na «Comunidade de Direito», bem como nas suas exigências normativas objectivas, ou inter-subjectivas, pressupondo estas ─ e não, supostamente, um Direito que apenas se fundasse e decorresse desse Estado (mera «legalidade», ainda que proclamada de «democrática»). Um Estado, pois, que pré-supõe a «Ordem de Direito» e a anterior «Ideia de Direito», como prévias e prioritárias em relação a ele, mas que também constitutiva e constantemente o transcendem e excedem.
Um Estado que é, portanto, apenas a «parte organizada» (como «organização», ou como «aparelho») da Comunidade Global (como Pátria, como Nação e como República) e cujo exercício de poder não é assim mais do que a efectivação do Direito e de fins que lhe são heterónomos, que o antecedem (lógica e ontologicamente, embora porventura nem sempre cronologicamente) e que o transcendem, pois como o disse já PASCAL: «A justiça sem a força é impotente, a força sem a justiça é tirânica… É preciso, portanto, pôr em comum a justiça e a força e, para isso, fazer que o que é justo seja forte, e que o que é forte seja justo».
Isto porque enquanto a «Comunidade Público-Política» (República + Estado), como comunidade aberta, livre, soberana e de direito, é uma verdadeira «instituição» política e jurídica comum, o Estado é uma mera «organização» política e jurídica (um mero «aparelho»), tendo em conta a conhecida distinção sociológica e cultural entre «instituições» e meras «organizações».
2. Um tal Estado é, no nosso tempo e, pelo menos, no espaço cultural e civilizacional europeu, um «Estado de Direito Democrático e Social». E assim, ao contrário daqueles para quem o primado é o da democracia e o da socialidade e o Direito é mera «legalidade», para nós, um tal Estado é, por esta ordem: 1º., um Estado de Direito; 2º., um Estado Democrático e, 3º., um Estado Social.
Resumir-se-á a ideia de um tal Estado dizendo que ele deve tender a ser, optimamente, um Estado de Justiça e um Estado de Liberdade, que são conceitos e realidades normativos que se completam e pressupõem reciprocamente.
3. E é também, não necessariamente, um Estado Mínimo (Cfr. ROBERT NOZICK, Anarchy, State and Utopia,, 1 974 -1 991), mas um «Estado Necessário»: com alguma razão definiu HEGEL, no seu tempo, o Estado moderno como «a necessidade externa» da sociedade civil. Isto só pode significar que só deve haver Estado aonde ele é na verdade «necessário»: nem mais, nem menos Estado, apenas o «necessário». O que é outra forma de enunciar o princípio (cristão) da «subsidiariedade».
Aliás, a máxima cristã «A César o que é de César…» significa também, em sentido lato, ou numa sua legítima interpretação extensiva: «Ao Estado o que é o Estado e… à sociedade civil o que é da sociedade civil !».
Julho de 2 007.
Virgílio de Jesus Miranda Carvalho.
24 Julho 2007
1. O indesmentível e desejável pluralismo social e cultural reais de uma sociedade/comunidade aberta dos nossos dias (que é tanto um pluralismo horizontal, como um pluralismo vertical), se implica decerto um relativismo moderado, no que respeita a valores e a perspectivas, e mesmo um pluralismo axiológico, não se confunde seguramente e é mesmo incompatível com o «relativismo radical anti-normativo» (ou relativismo absoluto, dito por alguns de «pluralismo integral», e por outros ─ JOHN GRAY ─ de «pluralismo objectivo e radical dos valores», radical value-pluralism, ou objective pluralism of the radical sort, que radica na «radical incomensurabilidade dos valores» de JOSEPH RAZ, ou ainda, de «pluralismo intratável»), porquanto aquele primeiro não abdica de um núcleo essencial (hard core) mínimo de valores fundamentais comuns, tanto no momento objectivo-comunitário, como no momento antropológico fundamental.
O que quer dizer que o próprio pluralismo tem um limite: sem um mínimo de um comum universal de valor ou de validade (ou de uma «forma de vida comum», no dizer do mesmo JOHN GRAY) não é possível qualquer comunicação e a ruptura absoluta exclui mesmo o conflito.
Este referente comum mínimo não pode deixar de ser, hoje, por um lado, a concepção do homem como «pessoa» e, por outro lado, a concepção da sociedade como uma «comunidade de pessoas». Mesmo a democracia liberal ocidental não prescinde de um referente axiológico central, comum e universal, que é a pessoa humana individual e, pelo menos, os valores da liberdade e da igualdade.
2. Mas, apesar deste pluralismo axiológico limitado ─ e justamente com ele ─, é perfeitamente defensável uma «unidade ontológica de (toda) a ordem normativa cultural», i. é a existência de um mesmo fundamento ontológico comum a todas as várias ordens normativas, seja esse fundamento, para uns, já de origem divina, seja ele, para outros, um mesmo poder ou fonte seculares, seja ele ainda uma mesma comunidade, seja ainda uma mesma natureza humana comum e universal.
Quanto a nós, esse fundamento é a autónoma pessoa humana individual e as suas dignidade e unidade. Mas pode ver-se, sobre o tema, SOARES MARTÍNEZ, Filosofia do Direito, Coimbra, 1 991, p. 230 e seguintes.
Esta unidade ontológica é incompatível, tanto com o unanimismo arcaico, tribal ou colectivista, ou com uma acrítica homogeneidade social e cultural massificada, como com o referido relativismo radical, absoluto ou anti-normativo. Mas é perfeitamente compatível com aquele, referido por nós, pluralismo (axiológico, jurídico, social, político, económico e cultural) limitado ou relativismo moderado: ou, afinal, «pluralismo razoável» (reasonable pluralism), na fórmula de JOHN RAWLS.
Coimbra, Julho de 2 007.
Virgílio de Jesus Miranda Carvalho.
23 Julho 2007
1. A ideia de «Constituição Mista» radica no pensamento de ARISTÓTELES de que o Estado ideal é aquele em que os governantes são sábios, prudentes e justos ─ e estas características só se encontram quando se reúnem a aristocracia e a democracia. Sendo a aristocracia (aristói = os melhores, os mais virtuosos, os mais excelentes, os mais sábios, os mais justos) a forma e a democracia a matéria, a unidade substancial da Res-publica (=comunidade público-política) seria a unidade desta forma com esta matéria, sem que uma possa separar-se da outra: «O carácter de perfeita mistura está em poder dizer-se do mesmo governo que ele é uma aristocracia e uma democracia, porque é evidente que aqueles que assim se exprimem se limitam a enunciar a impressão neles produzida pela perfeita mistura das duas» ─ ARISTÓTELES, Política.
A ideia de «Constituição Mista» já tinha sido lançada pelo antigo Estoicismo, encontra-se mais tarde em POLÌBIO e foi depois defendida por CÌCERO, SÃO TOMÀS DE AQUINO, MAQUIAVEL e mesmo MONTESQIEU, entre outros.
2. A aristocracia, como aristocracia moral, só é hoje possível e viável na base de um autêntico individualismo ou personalismo liberal-aristocrático, que é a antítese mesma do homem-massa de que nos falava ORTEGA Y GASSET (Cfr. A rebelião das massas, 1 930), ou do individual manqué de que nos falou OAKESHOTT: ser-aí, ou estar-aí, sem Existência.
Sendo aquela para nós legítima, hoje, só como aristocracias abertas e em contexto democrático geral, ela deverá ser constituída exclusivamente por personalidades distintas, excepcionais ou diferenciadas de um estrito ponto de vista qualitativo ou axiológico-moral e cultural e seleccionadas pela sua excelência, a sua boa reputação, a sua qualificação, o seu valor ou o seu mérito, i. é, sobretudo por aqueles ou aquelas que logrem conduzir uma existência autêntica e manter-se na, ou não abdicar da, dignidade humana do seu ser-si-próprio (Selbstsein).
Também, regra geral, quando autênticas e abertas, as aristocracias são mais vocacionadas para a prudentia (phronésis), a sageza, a moderação, a proporção, a ponderação, o equilíbrio e o justo-meio. Deveriam mesmo, para o futuro, constituir alguns órgãos políticos e constitucionais fundamentais, como por exemplo a Câmara Alta Legislativa, ou Senado, do modelo constitucional e político da Demarquia, proposto por FRIEDRICH HAYEK.
3. Quanto ao elemento monárquico do regime de constituição mista diremos apenas que, não tendo nós qualquer anacrónico dogmatismo ideológico em relação ao regime republicano de governo, entendemos que não está afastado (ou não deve estar afastado) que, contra todos os dogmatismos estabelecidos e contra a mera inércia do que simplesmente aí está, a questão e a causa da Monarquia venham de novo a ser discutidas em Portugal e, porventura, a ser aceites consensualmente, mediante, por exemplo, uma oportuna consulta popular, desde que conduzido o processo com liberdade, isenção, objectividade e esclarecimento.
Com efeito, quanto a nós, e pressupondo uma possível adopção, no futuro, em Portugal, de um regime constitucional e político de acordo com o modelo da Demarquia proposto por FRIEDRICH HAYEK, a Chefia do Estado deveria ter um carácter de dignidade sobretudo moral e simbólica, já que visaria apenas (e não é pouco !) representar, na pessoa de um indivíduo singular, que deve ser «um homem só» (embora não isolado), acima dos partidos e de quaisquer outros grupos de interesse organizados e acima das tarefas correntes da «governação», a dignidade, a unidade, a identidade, a estabilidade e a continuidade nacionais.
4. Aliás, recorrendo à conceptologia usada por ORLANDO VITORINO (Cfr. Exaltação da Filosofia Derrotada, 1983), que distingue entre a Nação (que é «… o conjunto das gerações ─ passadas, presentes e futuras ─ de portugueses…»), a Pátria (que é «…a entidade espiritual de Portugal e exprime-se, existe e perdura na língua, na arte e na história»), a República, como comunidade público-política (que é «…a “coisa pública”, reúne o que é comum interesse, virtual ou manifestamente imediato, de todos os portugueses») e o Estado (que é «… a efectivação do Direito ─ na Nação, na República e na Pátria ─ segundo a Verdade, a Liberdade e a Justiça»), diríamos que, o Monarca representaria e simbolizaria, sobretudo, a Nação e a Pátria, na sua transcendência e continuidade intemporal, mais do que apenas ser também um Chefe de Estado e da República.
Ponto é que haja suficiente consenso democrático sobre a re-instauração desta instituição ─ a Monarquia ─, tão necessária, uma vez que parecem criadas em Portugal as condições subjectivas e pessoais de legitimidade dinástica para a sua existência, sucessão e continuidade.
Coimbra, Julho de 2 007.
Virgílio de Jesus Miranda Carvalho.