1. Poderiam perguntar-nos – a partir de um dos falsos dilemas, estereótipos, etiquetas, rótulos e consequentes aporias criados por um certo sector de uma certa «ideologia moderna» (em lato sensu) – se as posições que defendemos em várias matérias (filosóficas, culturais, jurídicas, políticas, económicas, sociais, etc) são «conservadoras» ou «progressistas» ? Ou, num outro registo, respectivamente, de «Direita» ou de «Esquerda» ?
2. A nossa resposta seria a de que, «hoje», não é possível encaixar num tal «Espartilho», meramente ideológico e dogmático, ou esquema binário-digital, a complexidade de posições que se adoptam, nas mais variadas matérias e assuntos, em muito diversos e distintos. No âmago mesmo da insuprimível dialéctica civilizacional entre «Conservação» e «Mudança» – e, sobretudo, superlativamente nas modernas sociedades hipercomplexas, dinâmicas, de mutação acelerada a abertas de cooperação e de mercado dos nossos dias, em que a «mudança» constante e sistemática pôs decisivamente em causa e tornou obsoleta qualquer «ideologia» dita, ou auto-proclamada, «progressista» – só se pode assumir posições, com uma ou outra coloração, em função dos «problemas» e das «áreas temáticas» diversas e variadas, sem prejuízo, é certo, da unidade e identidade integradas de uma qualquer «concepção global» e de uma «atitude fundamental».
3.Assim, concedendo embora – e tendo presente a afirmação de RALF DAHRENDORF de que «(…)O Liberalismo (o «Clássico» – muito especialmente, o da velha e britânica «Tradição Whig» -, que é aquele que adoptamos, básica e globalmente falando) é acerca da “mudança”, mas não da “revolução”, porque os liberais acreditam mais nas “pessoas” do que nos “sistemas”» – definiríamos, com alguma cautela, a nossa posição, ou concepção global, do seguinte e multifacetado modo:
Somos:
a) – «Conservador»: desde logo e em 1º. lugar, nos «afectos» e nos «vínculos inter-pessoais»; depois e consequentemente, na «Filosofia da Vida» («Levar uma Humana “Vida Boa”, entre Humanos» – é uma máxima ética de, por exemplo, um FERNANDO SAVATER, em Ética para um Jovem); na «Cultura», nos «Valores», «Princípios» e «Dimensões Normativas Fundamentais» (conservação das «boas tradições» e dos «bons costumes», com méritos comprovadamente reconhecidos); nas «Instituições Determinantes» (o «Estado-de-Direito» = Rule of Law, por exemplo); e no «Ambiente»: não só natural, como também cultural e humano – a tal «Ecologia Humana e Cultural» de que falou JOÃO PAULO II;
b) – «Liberal Comunitário» (Clássico) e «Cosmopolita», em Política e no Plano Social-Geral e Cívico mais alargado: incontornáveis «liberdade» e «pluralismo» pessoais, éticos, axiológicos, religiosos, políticos, culturais, económicos e sociais e incomensurável «diversidade» de «formas-de-vida» humanas, culturais e sociais; mas, também, preocupação com a saúde, a vida e a unidade da «Comunidade», como «Comunidade Aberta» ou «Comunidade Liberal» (JOHN RAWLS; WILLIAM A. GALSTON);
c) – «Social-Liberal» ou «Reformista», em «Economia»: mínima Política Económica do Estado, reguladora e integradora, mas subsidiária, complementar e pontual ou parcelar; Gradualismo Reformista Popperiano e indispensável Grelha Jurídica da Economia (também aqui a «Rule of Law»); tudo isto no quadro de uma «Ordem Cataláctica» descentralizada, plural, aberta, concorrencial e social de «Mercado» (Soziale Marktwirtshaft), fundada nas Categorias Económicas da «Propriedade», do «Mercado» e do «Dinheiro», mas orientada para a satisfação dos interesses sociais supremos, não só dos Trabalhadores e/ou dos Empresários, como sobretudo, dos «Consumidores» que somos, universalmente, todos nós;
d) – E, isso sim, «Progressista», em Ciência e em Tecnologia, sem iludir contudo os graves e melindrosos problemas éticos e deontológicos que também aqui se levantam.
4. Por isso – e quanto ao mais -, confiamos, sobretudo, na livre espontaneidade, na originalidade, na criatividade e na dinâmica da própria «Vida» (ou seja, afinal, justamente no heideggeriano «deixar ser…»), bem como na enorme e imprevisível capacidade de «mudança», de «inovação», de «transformação» e de «risco» das «Pessoas» mesmas e das sociedades, quando verdadeiramente «espontâneas» e «livres» e só enquadradas por uma autêntica «Ordem de Liberdade» (Kosmos). Coimbra, Setembro de 2 007.
Virgílio de Jesus Miranda Carvalho.
De entre a multiplicidade das dimensões da «Pessoa Humana Real» – que a definem como uma «complexidade integrada», pois que a pessoa não é uma mera simplicidade, mas uma «unitas multiplex», uma «unidade ou ordem plural» – é possível identificar, pelo menos e de um modo fundamental, as seguintes linhas de força:
1. Uma dimensão estrutural «a priori» ou constitutivo-formal que é uma sua «Natureza Humana Comum e Universal» – ou melhor: uma mesma «constituição ontológico-fundamental», na terminologia de MARTIN HEIDEGGER, que interpreta o «ser» do homem, na verdade, menos como «quididade» ou «substância», e mais como jogo, ordem relacional interna, abertura, plasticidade, mobilidade interna, mutabilidade, temporalidade e historicidade, projectividade, possibilidade «transcendens», etc. , ou um «fundamento humano comum», expressão de «uma mesma e universal realidade humana», aberta, dinâmica e plástica, móvel e mutável, dotada de historicidade, comum a todos os outros seres humanos, como quadro-geral de determinações e de possibilidades que a «constituem» na sua «universalidade humana» e que é a chamada «identidade do diferente»: enfim, todos os «existenciais» e «modos-de-ser» analisados pelo mesmo HEIDEGGER em «Ser e Tempo», 1927.É esta dimensão que funda o valor da «Igualdade» (ontologicamente configurada) entre todas as pessoas e, entre outras coisas, enfim, a «Democracia», como universalidade.
2. Uma horizontal dimensão material (afectiva) «relacional externa», ou «social» (possibilitada pela sua vocação de «sociabilidade», que, embora não exclusiva, FREUD disse ser a sua «aspiração à comunidade»): na verdade, boa parte da sua «identidade» é de origem e constituição «social», desde a formação precoce da «personalidade» no triângulo edipiano da interactiva «situação parental» (parenthood) da família; até, depois, na relação e interacção com a escola, o grupo juvenil, os vários contextos sociais, a civilização e a cultura envolventes, etc. Por outro lado, a pessoa não deixa de formar, em alguma medida, «uma sociedade consigo própria», uma «ordem relacional interna», devido à pluralidade de subjectividades e de fidelidades que, socialmente, os vários contextos sociais externos nela vão constituindo.Só que, esta dimensão – que não tem nada de um exclusivo e total necessitarismo substancialista e essencialista «a priori», como o defende o personalismo substantivista-social dogmático e toda a espécie de «socialismos», que só falam da «pessoa social» e de uma dogmática e exclusivamente única essência ou natureza «social» da pessoa… – não define à pessoa toda a sua «essência» ou «natureza» (que é, não se esqueça, antes do mais, «Ek-sis-tência»), não esgota toda a sua interioridade, subjectividade e espiritualidade, pelo que, existindo também na pessoa uma indesmentível e parcial dimensão de «insociabilidade» (a «sociabilidade insociável» de que falava KANT), pode hoje, tranquilamente, dizer-se que «nem todo o humano é social». Há uma dimensão da pessoa e da liberdade que será sempre pré-, extra-, ou méta-social. E daqui a conclusão moderna de que o homem não é só «um animal gregário»: «zoon politikon», lhe chamou ARISTÓTELES.
3. E tem ainda a pessoa uma sua vertical «individualidade própria real» (individualidade natural), possibilitada pelo princípio ôntico-ontológico forte da «individuação», e que se dá e se exprime imediatamente (primeiro, na comum experiência humana da Existência consciente) na unidade ôntico-ontológica do «Eu» (verdadeiro ponto de sutura entre o ontológico e o psicológico), como diferença, como mónada solitária, como substância individual e individuada e como «Existente»: LÉVINAS. Ou seja, a sua estrema e absoluta «singularidade ética individual» e «idiossincrática própria», particular, concreta, diferenciada, única e irrepetível, que a distingue individuadamente de todos os outros seres humanos, através da «Ipseidade»: da «Selbstheit», do «Selbstsein», ou «ser-si-próprio» da filosofia existencial alemã.
E, para uma concepção individualista, realista e crítica da pessoa humana, como a nossa, mesmo que tenhamos que reconhecer que «…o homem real é a unidade dialéctica de duas relativas autonomias, a autonomia do seu “eu social” (…) e de um “eu pessoal” – a unidade dialéctica, se quisermos, da objectividade e da subjectividade humanas» (A. CASTANHEIRA NEVES) – todavia nós afirmamos o «relativo primado do eu pessoal sobre o eu social». Não uma simetria ou perfeita reciprocidade entre aqueles referidos dois eus (ou as duas dimensões do «Self»), mas o «relativo primado ou a preeminência última do eu pessoal sobre o eu social», a preeminência da «Selbstheit», do «Selbstsein», ou do «ser-si–próprio».
Na aceitação da parcial dimensão «social» do «Self» divergimos decisivamente do individualismo estrito e absoluto, do «falso individualismo» solipsista, radicalmente atomista, fragmentarizante e moderno-cartesiano de que falava HAYEK, o qual desemboca, paradoxalmente, tanto no libertarismo ou anarquismo radicais, como no socialismo e colectivismo totalitários. Na afirmação da relativa prioridade ôntico-ontológica ou preeminência última do «eu pessoal», convergimos com o «verdadeiro individualismo» deste último autor referido e de POPPER e com o relativo «privilégio ontológico» que também HEIDEGGER disse ter sempre o ser humano (o «ser-aí», o «Da-sein») sobre o «mundo», sem contudo negarmos este e a sua específica realidade aberta, nem as decisivas autonomia e objectividade sistémicas relativas da sociedade e da civilização.
Coimbra, Setembro de 2 007.
Virgílio de Jesus Miranda Carvalho.