«Eros» e «Thanatos»: o fundamento de uma Ética possível
Uma das ambivalências detectadas por SIGMUND FREUD no ser humano, foi a que, a partir da chamada «viragem de 1 920», ele chamou a oposição entre «Eros» (pulsão de vida) e «Thanatos» (pulsão de morte): cfr. Malaise dans la civilisation, Viena, 1 929, na Revue française de psychanalise, T. VIII, nº. 4, 1 934, p. 692.
A tal ponto é importante essa dualidade e oposição, que ela oferece, a nosso ver, o fundamento de uma Ética possível.
Assim:
a) – O «Mal», no homem, é o que FREUD chamou a «pulsão de morte» («Thanatos»): a pulsão regressiva e destruidora que, tendendo a reduzir a matéria viva à sua condição primitiva da matéria inerte e inorgânica, se pode traduzir, visivelmente, tanto em regressão psicológica, em autopunição, em masoquismo, em excessiva auto-censura, em radical negatividade (e no consequente niilismo), em auto-depreciação, em desagregação psíquica e divisão, bem como, no limite, em suicídio; como também, em agressividade externa, hostilidade, ódio, conflito, antissocialidade activa, sadismo, violência, destruição, assassínio e, porventura, em guerras. A «pulsão de morte» é «… uma compulsão inerente, na vida orgânica, para recuperar um anterior estado de coisas que a entidade viva fora obrigada a abandonar, sob a pressão de perturbadoras forças externas», uma espécie de «elasticidade orgânica» ou «inércia inerente à vida orgânica», nos termos do próprio FREUD, o qual, segundo a interpretação de HERBERT MARCUSE, teria, deste modo, enfatizado, aliás, a natureza comum das duas pulsões ou instintos básicos, i. é, «… a descoberta da fundamental tedência “regressiva” ou “conservadora” em toda a vida instintiva»: cfr. Eros e Civilização, 3ª. Edição, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1 968, pág. 42 e seguintes.
O «Mal», neste sentido, está sempre potencialmente dentro do homem (a nossa intrínseca «violência fundamental») e, sob o efeito de certas circunstâncias e condicionalis-mos favoráveis, ou em certas situações sociais ou da vida, pode sempre «emergir» e manifestar-se, tanto internamente, como externamente. E embora se possa legitimamente distinguir entre uma «agressividade benigna» (que se encontra ao serviço e na defesa da vida) e uma «agressividade maligna» (que é contrária à vida e que prejudica, não só quem ou o que é agredido, como também o próprio agressor) – veja-se ERICH FROMM, explicado por NICOLA ABBAGNANO, em Nomes e temas da filosofia contemporânea, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1 990, págs. 101-102 -, o facto é que a segunda encontra manifestações imponentes em fenómenos tanto espontâneos, como a destrutividade vindicativa e a destrutividade estática (orgias, droga, puro exercício da crueldade, etc.), como em fenómenos caracteriais, como o sadismo e o masoquismo, sendo a sua expressão mais alta a necrofilia, como paixão por tudo o que é morto, podre ou doente, ou como interesse virado para tudo o que é mecânico por oposição a tudo o que é vivo.
Diga-se ainda que, o «Mal» é também o «niilismo», que NIETZSCHE detectou, pôs em evidência e assumiu, como resultado da «vontade de poder» radicalizada, inscrita no antropocentrismo moderno-ocidental, e que não passa, afinal, de mais uma manifestação da «pulsão de morte», hoje manifesta na destruição levada a cabo pela relação puramente instrumental que a «teconologia» tem com a Terra (Gaia) e com os seus seres viventes, sejam naturais ou culturais.
b) – O «Bem», no homem, é o que o fundador da Psicanálise chamou a «pulsão de vida» («Eros», que também se pode substancializar em «Ágape», sendo este último o amor como «impulso de finalidade inibida»: afecto, amizade ou estima, amor fraternal, amor entre pais e filhos, amor espiritual e amor a Deus, para os crentes, amor como generosidade e amor e caridade cristãos, etc. – sendo que todo o «Ágape» é «Eros», mas nem todo o «Eros» é «Ágape»): a qual é uma tendência que conserva, renova e perpetua a matéria viva, a complexifica, a agrega em unidades cada vez maiores e é responsável pela auto-estima, pelo amor-próprio e pelo sentimento de dignidade própria, pela integridade psíquica e moral próprias, pelo amor e afectividade sexuais, pela fraternidade e bondade humanas e por tudo o que nos liga autenticamente aos outros, bem como por tudo o que, no homem, é reparador, reconstituinte, restaurador, renovador, securizante, construtivo e elevado, estando por isso tendencialmente também na base da dinâmica construtora e da criatividade da própria Cultura. «Eros» é, afinal, como o disse HERBERT MARCUSE, no seu tempo, a «essência de ser» (como positividade), sendo todavia que os instintos vitais e libidinais «… são conservadores no mesmo sentido dos demais instintos, na medida em que trazem de volta os estados primitivos da substância viva», embora sejam conservadores «… num grau mais elevado»: FREUD, citado por este último autor.
c) – Deste ponto de vista, é «Ético» tudo o que contribui para a preservação, a conservação, a renovação e a perpetuação da Vida e da qualidade dessa Vida e a sobrevivência e a prosperidade da espécie humana e de todos os seres vivos do Planeta (numa vital «estratégia da sobrevivência alargada»: BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS).
Como o diz ainda o economista PEDRO ARROJA (Cfr. Cataláxia – Crónicas de Economia Política, Vida Económica, Porto, 1 993): «O carácter ético de um certo comportamento só lhe é conferido se, adoptando-o como princípio, ele contribui a prazo para o bem-estar da espécie humana», ou seja, tendo como ponto de partida possível o de «… considerar como princípio ético todo o princípio de comportamento que contribui para a sobrevivência e a prosperidade da espécie humana».
E também da «Vida» em geral, sobretudo hoje, na nossa «época ecológica» em que vivemos: tudo o que serve, conserva, renova e perpetua a Vida e a qualidade e dignidade dessa Vida é «Bem» e, como tal, «Ético».