Porque pensamos que o «princípio republicano» não é hoje necessariamente antinómico com e excludente de os princípios «monárquico» e «aristocrático», num regime de «constituição mista», que se deseja e que é o melhor dos regimes políticos.
Porque a «República» e o «Estado» (como Comunidade Público-Política) não consomem a totalidade da comunidade nacional global, que integra ainda a «Nação», a «Pátria» e o «Povo» (como Comunidade Humano-Social, Cultural e Histórica Independente) e são mais abrangentes.
Porque uma Constituição deve referir, explicitando, não só o «princípio democrático», como também os «valores pessoais» mais íntimos e mais importantes e o seu alcance, devendo explicitar, também, os «valores e princípios jurídico-constitucionais fundamentais».
Porque a «Constituição», ela própria, se vincula a uma superior e transpositiva «Ordem de Direito», acima e para além dela, contida no «Métaconsciente» cultural e civilizacional de uma dada sociedade.
Propomos, assim, a seguinte sugestão de reformulação dos três primeiros artigos, fundacionais e preliminares, da «Constituição», para uma futura revisão constitucional, que se quer ampla, profunda e globalmente estruturante.
Assim:
Artigo 1º.
(Portugal)
Portugal é uma Comunidade Humano-Social, Cultural e Histórica Independente e uma Comunidade Público-Política Aberta, Livre, Soberana e de Direito, fundado na dignidade, autonomia, liberdade e responsabilidade da Pessoa Humana Individual, bem como na Democracia, no seio de uma constituição mista, e empenhado na viabilização de uma, real e efectiva, Sociedade Aberta, Livre, Solidária e Justa.
Artigo 2º.
(Valores e Princípios Jurídico-Constitucionais Fundamentais)
1. A dignidade, autonomia, liberdade e responsabilidade da Pessoa Humana Individual são pressuposto e condição de todo o Direito — o qual se funda, também, nos princípios da Verdade, da Justiça, da Liberdade, da Segurança e da Paz — e limite último e absoluto a todo o Poder.
Implicam a autonomia, a liberdade, a igualdade e a responsabilidade das pessoas em comunidade e são fundamento de todos os seus Direitos e Deveres Humanos Fundamentais.
2. A democracia funda-se na opinião pública legítima do Povo, livremente constituída e manifesta, no modo de uma sua pública consciência cultural e normativa comum.
Assenta no pluralismo social, económico, político, cultural, jurídico e de expressão de uma sua Comunidade Aberta.
Consiste em garantir a possibilidade de participação voluntária de todas as pessoas e entes sociais na vida da comunidade, em autonomia, em liberdade, em igualdade e em responsabilidade.
Assim como, em possibilitar e promover, activamente, as iniciativas e as dinâmicas das autonomias individuais, sociais, regionais e locais; o princípio da subsidiariedade; e, consequentemente, os sub-princípios da desconcentração, da descentralização e da regionalização público-político-administrativas; bem como, também, e socio-estruturalmente, o princípio da economia descentralizada, plural, aberta e social de mercado e das livres iniciativa e concorrência económicas.
E garantindo, acima de tudo, jurídica e institucionalmente, a defesa e a possibilidade de uma realização efectiva dos Direitos Humanos e Fundamentais dos Cidadãos, tanto como Direitos Universais de Cidadania, quanto como Direitos de Cidadania Universal.
Artigo 3º.
(Estado de Direito Democrático e Social)
Portugal, como uma Comunidade Humano-Social, Cultural e Histórica Independente e como uma Comunidade Público-Política Aberta, Livre Soberana e de Direito, incorpora, dentro de si, um Estado de Direito Democrático e Social, que é fundado e estruturado: no respeito e na garantia primeiros dos Direitos e Liberdades Fundamentais e Humanos das pessoas; na separação e na interdependência, na corresponsabilidade e no equilíbrio, orgânicos e funcionais, entre todos os seus poderes públicos e institucionais, bem como na comum vinculação de todos eles à Constituição, à Lei e à Ordem de Direito.
Estado esse que é fundado, também, na soberania legítima do Povo, a qual se exprime no modo de uma sua pública consciência cultural e normativa comum, como opinião pública legítima e no contexto de um seu pluralismo social, económico, cultural, jurídico e de expressão política.
E o qual, Estado, tem ainda por objectivos a possibilitação da realização efectiva de uma Democracia Económica, Social e Cultural e de uma Democracia Cosmopolita.
E que visa, ainda e finalmente, a viabilização e o aprofundamento de umas, concreta e socialmente contextualizadas, Democracias Participativa e Dialógica.
Abril de 2 007.
Virgílio de Jesus Miranda Carvalho.
Não tem havido, em Portugal, suficiente «consenso» (ou «coragem política») em reformular o «Preâmbulo» da «Constituição da República Portuguesa», que continua com a mesma redacção originária, ao arrepio das novas realidades da nossa sociedade e, mesmo, das várias «revisões constitucionais» entretanto efectuadas. Propõe-se, pois, agora, o seguinte texto, que sem fazer, totalmente, ruptura com a identidade constitucional, melhor se nos configura para a actualidade. Assim:
«A 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas, coroando a longa resistência do povo português e interpretando os seus sentimentos profundos, derrubou o regime autoritário.
Libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo representou uma transformação revolucionária e o início de uma viragem histórica da sociedade portuguesa.
A Revolução restituiu aos Portugueses os direitos e liberdades fundamentais. No exercício destes direitos e liberdades, os legítimos representantes do povo reúnem-se para elaborar uma Constituição que corresponde às aspirações do país.
A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios básicos da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito Democrático e Social e de abrir caminho para uma sociedade aberta, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno.
A Assembleia Constituinte, reunida na sessão plenária de 2 de Abril de 1976, aprova e decreta a seguinte Constituição da República Portuguesa:».
Abril de 2007.
Virgílio de JesusMiranda Carvalho.
1. Acabámos de ler mais um livro que nos chega do Reino Unido.
O seu título é: «Compassionate conservatism. What it is. Why we need it» — Conservadorismo compassivo (ou «solidário», como outros preferem traduzir). O que é. Porque precisamos dele. Da autoria de JESSE NORMAN e JANAN GANESH e publicado pela Policy Exchange, Londres, 2 006.
2. Os autores pretendem apresentar uma forma de «conservadorismo» que não se identifica estritamente com o Conservadorismo (com maiúscula) do Partido Conservador Britânico, ou Tory, mas que é comum a quaisquer «conservadores» que possam, em princípio, pertencer a quaisquer partidos políticos, ou a nenhum.
A sua básica teoria do Estado deriva largamente de THOMAS HOBBES; não ignora JOHN LOCKE; e, não pertencendo, nem à tradição paternalista, nem à tradição individualista, do conservadorismo, está mais próxima de uma outra tradição: a distinta e sempre esquecida tradição «Old Whig», que tem as suas raízes em ADAM SMITH e EDMUND BURKE e o seu moderno florescimento em MICHAEL OAKESHOTT e FRIEDRICH HAYEK.
3. O livro é um libelo contra o «estatismo», quer o actual britânico, quer o de quaisquer outros países. Para isso, depois de firmar os seus fundamentos na teoria da legitimidade do Estado de HOBBES, recorre à consagrada distinção de OAKESHOTT entre uma «civil association» e uma «enterprise association».
Como explica JOHN GRAY, no seu livro intitulado Liberalisms: Essays in Political Philosophy, Routledge, London & New York, 1 989, 1 990, 1 991, para a concepção de sociedade do conservador liberal britânico MICHAEL OAKESHOTT, a civil association é uma associação entre pessoas que, não tendo quaisquer fins ou propósitos em comum, não obstante coexistem em paz sob a rule of law, cuja função não é impor quaisquer particulares deveres ou objectivos aos homens, mas sobretudo facilitar a sua lide uns com os outros e assegurar as condições em que as pessoas podem entre si contratar em actividades mutuamente escolhidas, facilitando aos indivíduos a prossecução dos seus próprios fins, não tendo por isso o law nenhum propósito em si próprio, mas sendo formado apenas por regras gerais não-instrumentais e independentes de fins (purpose-independent general rules). Já a enterprise association é uma concepção que, apesar de coeva da anterior e que sempre a combateu, está na base do excessivo intervencionismo estatal socialista ou social-democrata contemporâneo e para a qual a sociedade e o Estado são entendidos como uma «organização» para a obtenção de um fim, ou de uma hierarquia de fins, e que tem sido dominante nas doutrinas colectivistas e positivistas do nosso tempo, desde o comunismo soviético (ou chinês), ao nacional-socialismo, passando pelo New Deal, a economia mista, o corporativismo e o capitalismo do Welfare, sendo uma concepção radicalmente inimiga da realização da individualidade humana.
4. O livro de que nos ocupamos agora apresenta, assim, a partir da concepção da civil association, uma concepção de sociedade, a que chama connected society: uma sociedade interdependente ou religada (ou «conexa», como outros preferem traduzir).
A ideia de connected society pretende preencher o que, tanto em HOBBES, como em OAKESHOTT, fora omisso, àquem de uma sua especificação mínima: a ideia de que, o que motiva os seres humanos viventes, amantes e mortais, que se associam em grupos ou instituições de qualquer imaginável espécie, é a afectividade humana. Não apenas a obediência a regras, ou a prossecução de quaisquer objectivos colectivos, mas um sentido de cultura, de identidade e de pertença. É o sentimento de pertença, de estar dentro de um círculo e de fazer parte de um grupo. Assim, há uma nova espécie de associação, mais baseada na afectividade do que nos procedimentos legais ou nos propósitos deliberados. A associação «connected» recorre à palavra grega philia, de cujos vários significados se destacam os de amizade, laço, afeição e cuidado. Faz-se assim luz sobre o que HOBBES deixara de fora: um lugar para os seres humanos e para o que os ajuda a florescer; um lugar, entre o indivíduo e o Estado, para todas as instituições e corpos intermédios que nos re-ligam em conjunto e dão preenchimento às nossas vidas; uma presunção contrabalanceada em favor do indivíduo; e o reconhecimento de que o que motiva os seres humanos não tem que ser apenas uma questão de «pau e cenoura», combinada com regras ou com a prossecução de um qualquer objectivo colectivo, mas de cultura, de identidade e de pertença. Assim, a sociedade é organizada horizontalmente, não verticalmente por relação com o Estado, de modo a colocar essas instituições intermédias no seu coração.
5. Isto comporta três compreensões: a de que o homem é um animal social; as pessoas não são apenas estéreis agentes económicos, mas seres viventes e respirantes que encontram a sua auto-expressão e identidade em relação com outros. Um ponto de vista político que ignora a dignidade humana, ou a energia, ou a criatividade, sob o nome de um estéril economicismo, empobrece-se a esse grau. Os conservadores compassivos estarão mais próximos de HAYEK quando ele disse que a totalidade da natureza e do carácter dos indivíduos é determinada pela sua existência em sociedade. Em segundo lugar, assim sendo, as pessoas criam instituições, de extraordinária escala e diversidade, e essas mesmas instituições ajudam a moldar as pessoas que lhes pertencem e a sociedade mais amplamente. Por fim, algumas dessas instituições colocam-se, elas mesmas, entre o indivíduo e o Estado, actuando, entre outras coisas, como condutoras, orientadoras e garantes da estabilidade.
Numa sociedade, os indivíduos são socii, em latim, que colectivamente pertencem e se reconhecem uns aos outros como «pertencentes», o que cria um grau de mútuo respeito e de obrigação entre eles. Estes associados são iguais e livres e o laço que cada um deve ao outro deriva o seu valor de ser livremente concedido.
Uma sociedade é assim, neste básico sentido, uma associação liberta de classes, hierarquia ou qualquer outra estrutura herdada, ou instituição, que possa constranger a liberdade dos indivíduos. E pela mesma razão, uma sociedade é e deve ser liberta de avassaladoras concentrações de poder. O Poder deve ser difuso; deve ser partilhado e contrabalanceado para que uma sociedade possa existir de todo. A rule of law é tanto um pré-requisito, como uma específica criação de uma tal partilha de poder: instituições como a propriedade privada, ou o habeas corpus, ou a independência do judiciário, naturalmente despontam para proteger liberdades e interesses existentes e para permitir que se desenvolvam novos. Estas instituições servem então, por sua vez, como protectoras da liberdade.
Numa sociedade interdependente, o Estado soberano é uma instituição entre outras, apesar de ser uma instituição privilegiada. Como cidadãos, devemos-lhe confiança moral, como HOBBES acreditava; mas como associados também devemos confiança uns aos outros e às muitas instituições que nos definem. O Estado é apenas titulado com o poder de coagir os indivíduos de acordo com o law contra a sua vontade. Mas precisamente por essa razão, ele está sob continuadas obrigações. Primeiro, a de restringir-se às suas próprias acções, reconhecendo os seus limites intrínsecos e balanceando as sua próprias acções com os arranjos e as organizações existentes; em segundo lugar, reforçando e apoiando essas mesmas instituições que inibem o seu poder e o forçam ao diálogo.
A centralidade das instituições está em que, em vez da oposição entre o indivíduo e o Estado, que se encontra em muita teoria política, temos uma relação tripartida, entre os indivíduos, as instituições e o Estado, que é o aspecto que transforma a sociedade num florescente organismo.
6. Finalmente — e isto é apenas uma pálida imagem da riqueza e do enorme potencial crítico de todo o livro —, a referência a três princípios: numa sociedade interdependente, a ênfase está na autonomia e na liberdade individuais, na diversidade e no pluralismo, nas instituições que ligam as pessoas em conjunto e na atenção às tradições e cultura comuns. Para os conservadores compassivos, reduzir o poder do Estado é não só desejável, em princípio, como a pré-condição de uma melhor sociedade. O primeiro princípio é, pois, o da liberdade. Ele reconhece que muitas intervenções do Estado são necessariamente coercivas e que outras possam ser desejáveis. Mas insiste em que os indivíduos, como cidadãos, devem usufruir de uma presunção positiva de liberdade e contra as interferências do Estado nas suas vidas. A contrapartida desta liberdade é a de que os indivíduos devem assumir um maior grau de responsabilidade pessoal pelas suas vidas. Afinal de contas, se o Estado é o meio que usamos para pagar pela nossa saúde, bem-estar e educação, então só poderemos esperar que ele tenha interesse em como nos comportamos.
O segundo princípio é o da descentralização (e, embora os autores não o refiram, poder-se-ia falar, também e mais amplamente, no «princípio da subsidiariedade»). Ele traz o poder político e a responsabilidade de volta para os cidadãos individuais, sublinhando que as decisões políticas devam ser tomadas, na medida do possível, o mais próximo das pessoas que elas afectam. Algumas decisões têm de ser tomadas a nível nacional, ou internacional; mas muitas decisões podem e devem ser trazidas para o nível local.
O terceiro princípio é o de prestar contas. Ele permite aos cidadãos exercer a sua vontade política efectivamente, insistindo em que os que estão no poder político devam prestar claramente, à cidadania, contas pelas suas acções.
Tudo isto sublinha a amplitude em que o conservadorismo compassivo encara a limitação do poder do Estado e preserva e estende a nossa democracia. Contudo, a democracia não é o único valor político. Ela pressupõe a rule of law e, assim, que os nossos arranjos constitucionais estejam funcionando bem.
O conservadorismo compassivo está também preocupado, neste princípio de século, com a confiança e a segurança — que só uma visão correcta da sociedade, numa época de globalização, pode potenciar, num contexto de diálogo e de conversação entre todas as partes envolvidas: os indivíduos, as instituições e o Estado.
COIMBRA, Março de 2 007.
Virgílio de Jesus Miranda Carvalho.